A quebra dos contratos psicológicos nas relações de trabalho é, talvez, uma das principais causas do desengajamento dos funcionários, e um dos fatores que mais fragiliza a cultura organizacional.

Resumo

Este artigo explora o impacto do desengajamento no ambiente corporativo a partir da história de Melissa, uma profissional que viu seu entusiasmo se esvair à medida que a empresa onde trabalhava se distanciava de seus valores originais. A narrativa se entrelaça com conceitos da Teoria da Agência e da Teoria da Autodeterminação para explicar como o desalinhamento entre propósito individual e metas organizacionais compromete não apenas o bem-estar dos colaboradores, mas também a cultura e a performance da empresa. Mais do que um caso isolado, o texto lança luz sobre um fenômeno global: o desencantamento silencioso que corrói o coração das organizações que negligenciam o sentido e o pertencimento no trabalho.

Melissa tinha a vida pela frente. Sua boa educação abriria portas rapidamente para atividades profissionais, principalmente aquelas ligadas ao atendimento presencial, dada sua simpatia e vontade de servir. Não demorou muito para ser efetivada e ganhar estabilidade em uma loja especializada em alimentos premium. 

A loja também era jovem. Jovial, melhor dizendo. Atraía um público hedonista de alto poder aquisitivo, de todas as faixas etárias, por uma série de predicados: produtos frescos, marcas sofisticadas, localização estratégica, ambiente intimista. E, sem dúvida, o atendimento.

A missão era clara:  proporcionar experiências únicas em gastronomia mundial, oferecendo não apenas produtos diferenciados, mas uma verdadeira consultoria, com um atendimento técnico, personalizado, com foco na excelência e na satisfação do cliente.

Era a praia da Melissa. Nos dois primeiros anos, tornou-se conhecida por todos, principalmente os clientes mais frequentes, que faziam questão de seu atendimento. Organizar eventos externos e conduzir experiências gastronômicas passaram a ser parte de sua rotina. Ela não era apenas funcionária. Era, aos olhos dos clientes, um dos símbolos da marca.

Ela via, naquele lugar, um ambiente para prosperar. Para o negócio, mas também para ela.

Contudo, como tantas histórias no mundo corporativo, a linha que separa prosperidade e frustração é mais tênue do que parece.

A loja crescia. Uma nova unidade, mais clientes, mais processos, mais controles. A operação, que antes respirava proximidade, técnica e encantamento, começava a se render aos modelos de escala. Mais metas. Mais indicadores. Mais pressão.

Melissa percebia que, aos poucos, o foco deixava de ser a experiência e passava a ser a produtividade. O que antes era uma consultoria gastronômica, agora se resumia a um atendimento apressado, sem espaço para conversas, sem tempo para detalhes. As orientações mudaram: mais eficiência, menos papo. Treinamentos mais superficiais, deixando de lado os valores antes priorizados nas relações entre as pessoas.

“A gente precisa ser mais objetivo”一 dizia agora a supervisora.

A loja queria uma coisa. Melissa, outra.

O que parecia, no início, um projeto de vida, agora começava a gerar uma dissonância difícil de ignorar. 

A pergunta, não dita, mas presente todos os dias, era: será que o crescimento da empresa não estava comprometendo justamente os valores e as práticas que a haviam feito prosperar? 

Quando empresa e colaborador já não compartilham os mesmos valores e motivações, surgem comportamentos de defesa, desgaste e, inevitavelmente, ruptura. De um lado, a empresa buscava performance. Do outro, Melissa buscava sentido.

Mais do que um desalinhamento individual, o que se revelava aqui é um sintoma estrutural: ao crescer, a empresa começava a abandonar os valores que haviam sustentado seu sucesso inicial e, com isso, afastava não apenas Melissa, mas a própria essência que a diferenciava no mercado.

O que os líderes frequentemente esquecem é que pessoas como Melissa não se movem apenas por salário ou bônus. Elas se movem quando sentem que têm autonomia, propósito e pertencem a algo maior. Quando esses elementos se rompem, surge o desencantamento. E ele não fica restrito a uma pessoa. Aos poucos, contamina colegas, esfria relações com fornecedores e é percebido pelos clientes. O que era uma força viva se transforma em um ambiente frio e burocrático, corroendo silenciosamente a cultura e a identidade da empresa.

O ponto de ruptura

Aos poucos, a loja deixou de ser a pequena joia da gastronomia para trilhar o caminho típico de empresas que crescem sem uma arquitetura organizacional bem desenhada, sem estratégia, sem um plano diretor claro. Vieram mais processos, mais metas, padronização excessiva. Elementos naturais do crescimento, mas agora descolados dos valores que haviam sustentado o negócio. E, junto com eles, menos espaço para o atendimento personalizado e para a troca afetiva que fazia os olhos de Melissa brilharem. As promessas que um dia alimentaram seus sonhos foram sendo esquecidas no trajeto.

No fundo, o que vemos é um conflito clássico: de um lado, uma empresa que busca maximizar resultados e escalar; de outro, uma funcionária que deseja preservar autonomia, reconhecimento, propósito e o sentimento de pertencimento. É o dilema das organizações que, ao crescerem, afastam-se justamente da própria essência.

Quando os interesses se desalinham, o funcionário começa a fazer escolhas defensivas: desengaja, entrega o mínimo ou busca outro lugar que se alinhe às suas motivações

Pessoas não são máquinas operacionais. Quando sua autonomia, sua percepção de competência ou seu senso de pertencimento são feridos, o organismo reage: desânimo, afastamento, desligamento emocional e, frequentemente, físico. 

Diante desse cenário, as escolhas tornaram-se evidentes, adaptar-se a um modelo que não fazia mais sentido ou proteger a si mesma. Melissa escolheu olhar para si.

Começou a atualizar seu currículo, sondar empresas, conversar com conhecidos. O que antes parecia impensável, deixar aquele lugar que um dia foi tão cheio de significado, agora se tornava uma questão de sobrevivência emocional. Não mais um sonho de futuro. Tratava-se de não adoecer.

Ela sabia que, se ficasse, pagaria caro. A conta viria no corpo, na mente, na alma. Não havia mais encantamento. Só a rotina sufocante de quem sente que sua entrega deixou de ser valor para virar apenas número.

O caso de Melissa não é um ponto fora da curva. É um sintoma cada vez mais comum em empresas que, ao perseguirem crescimento, deixam de ouvir seus times e, com isso, não perdem apenas talentos, comprometem a experiência do cliente e colocam em risco o que as tornou relevantes no mercado.

O cliente sente. O mercado percebe. E o ativo invisível que sustentava o negócio começa a desaparecer.

Esse não é apenas o relato de Melissa. É um fenômeno global. Segundo a Gallup, apenas 21% dos funcionários estavam engajados em 2024. A maioria apenas cumpre tarefas sem conexão emocional e sem envolvimento real. E isso impacta diretamente a produtividade, a qualidade, a inovação e as relações com os clientes.

Por trás desse cenário, há uma dinâmica silenciosa, porém profunda: a quebra do chamado “contrato psicológico”, aquele acordo não formalizado, mas genuinamente percebido, que se estabelece quando o colaborador acredita que será reconhecido, valorizado e que terá oportunidades de crescimento dentro da organização. Quando esse pacto é rompido, surgem o desencantamento, o afastamento emocional e, muitas vezes, o desligamento.

O problema não está, necessariamente, no crescimento das empresas, mas na incapacidade de crescer sem perder de vista o humano no centro. Organizações não são máquinas. São sistemas vivos, feitos de gente, de vínculos, de sentido compartilhado. E quando isso se rompe, não se perde só um funcionário.

Perde-se cultura.

Perde-se alma.

Perde-se reputação.

A raiz desse problema é bem conhecida no campo da gestão. A Teoria de Agência, proposta por Jensen e Meckling, explica como os interesses dos “agentes” (funcionários) e dos “principais” (donos ou acionistas) entram em conflito. Enquanto a empresa busca maximizar resultados, o colaborador busca maximizar seu próprio bem-estar, propósito e desenvolvimento. Quando não há alinhamento, surge o jogo defensivo: controle excessivo de um lado, desengajamento do outro.

Por outro lado, a Teoria da Autodeterminação, de Deci e Ryan, revela o que verdadeiramente engaja as pessoas no trabalho: autonomia, competência e pertencimento. São esses três pilares que mantêm o contrato psicológico saudável. Quando uma organização sufoca a autonomia, reduz o trabalho a metas e esvazia vínculos humanos, mata o que há de mais potente na cultura: sua capacidade de inspirar e mobilizar pessoas.

Melissa não saiu por dinheiro. Saiu porque percebeu que estava adoecendo num sistema que, ao crescer, deixou de ser aquilo que prometeu ser. E esse não é só um problema de Melissa. É um problema de gestão. 

No fim do dia, empresas que esquecem disso estão assinando, lentamente, sua própria sentença. Porque não é possível escalar negócios desconectando-se do que faz qualquer negócio existir: gente viva, inteira, engajada e apaixonada pelo que faz.

Entendendo os conceitos teóricos:

Teoria da Agência (Jensen e Meckling)

A Teoria da Agência, proposta por Michael Jensen e William Meckling, explica a relação entre “principais” (donos ou acionistas) e “agentes” (executivos ou funcionários), destacando o potencial conflito entre seus interesses. Enquanto os principais buscam maximizar resultados, os agentes tendem a buscar a maximização do próprio bem-estar.

Essa divergência gera os chamados custos de agência. Para reduzi-los, a teoria propõe mecanismos como contratos, incentivos e práticas de governança corporativa, que ajudam a alinhar interesses e minimizar comportamentos oportunistas.

Quando esse alinhamento não ocorre, instala-se um “jogo defensivo”: de um lado, controle excessivo por parte da empresa; de outro, desengajamento dos colaboradores.

Esses pontos são amplamente discutidos na análise clássica da Teoria da Firma de Jensen e Meckling e nos estudos sobre o problema principal-agente.

Teoria da Autodeterminação (Deci e Ryan)

Desenvolvida por Edward Deci e Richard Ryan, a Teoria da Autodeterminação identifica três necessidades psicológicas básicas que sustentam a motivação intrínseca e o engajamento no trabalho: autonomia, competência e pertencimento.

Quando essas necessidades são atendidas, os colaboradores demonstram níveis mais altos de motivação autônoma, bem-estar e desempenho. Por outro lado, a supressão da autonomia, a redução do trabalho a metas exclusivamente quantitativas e a falta de vínculos sociais fragilizam a cultura organizacional e rompem o contrato psicológico.

A teoria também ressalta que o apoio à autonomia e o reconhecimento das competências são fundamentais para a internalização dos valores organizacionais e para a sustentação da motivação de qualidade.

Essas ideias são amplamente validadas na literatura sobre motivação no trabalho e gestão contemporânea.

Fontes

Metodologia proprietária Otimiza Consultoria; 

Vivência nas organizações; 

Literatura de gestão empresarial diversas.

http://gallup.com/workplace/349484/state-of-the-global-workplace.aspx

“O(s) nome(s) mencionado(s) é (são) fictício(s), utilizado(s) com o propósito de preservar a identidade do(s) envolvido(s) e suas organizações.